De cada iceberg, apenas cerca de 10% da sua massa emerge à superfície. Os demais 90% permanecem submersos, o que representa enorme perigo para a navegação.
Navegar é preciso, mas as restrições à liberdade impostas nas últimas semanas pelas mais altas Cortes do nosso país aos cidadãos brasileiros são estarrecedoras. Da censura prévia à invenção de condutas sancionáveis por analogia, os princípios mais elementares que fundamentam o Estado democrático de Direito foram sumariamente abolidos. Por enquanto, por prazo certo. Mas prenunciam tempos sombrios.
Como chegamos a esse estado de coisas?
“Tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente; nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas, explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações.” Assim escrevia Hannah Arendt em sua obra Homens em tempos sombrios.[1]
Há um arcabouço jurídico, político e filosófico, largamente sedimentado, que justifica as eleições periódicas, o voto universal, e o respeito à dignidade da pessoa humana, incluindo o de livremente expressar e comunicar seu pensamento.
Na esteira de Montesquieu, Locke e Rousseau, a democracia brasileira é constitucional, e reconhece ao povo a participação na organização e no exercício do poder político. O controle judicial, nos limites e na forma da Constituição, é essencial e necessário, mas não se confunde com o ativismo puro e simples que se vêm constatando em decisões recentes de nossas Cortes superiores, em meio às paixões eleitorais.
O Poder Judiciário detém a nobre missão de pacificação de conflitos e de interpretação e aplicação da ordem jurídica. Como bem registrou o ministro Roberto Barroso, “se a sociedade não compreender e não se identificar com o que fazem seus juízes e tribunais, haverá um problema. Tribunais não têm armas nem a chave do cofre. Sua autoridade decorre da credibilidade que desfrute junto à sociedade”.[2]
A credibilidade junto à sociedade decorre, em princípio, da fundamentação de suas decisões. Estas têm sido transmitidas ao vivo e repercutem nas redes sociais. Os cidadãos e a imprensa as acompanham. Em tal cenário, decisões que impõem censura prévia, silêncio e desmonetização de canais de informação e de comunicação, de forma seletiva e parcial, contra e acima da lei, não apenas minam a confiança no Poder Judiciário como prenunciam o fim do Estado de Direito.
Trata-se da ponta de um iceberg. Teorias sofisticadas, “pós-positivistas” ou “neo-constitucionalistas” coincidem em submeter o direito, em última instância, à vontade de alguns iluminados, capazes de desvendar o verdadeiro e oculto sentido das normas, inacessível ao povo que, por meio de seus representantes, as elaborou e as deve cumprir[3].
O direito deixa de ser previsível, e mais: o ativista judicial o interpreta de modo a acelerar as transformações sociais que supõe estarem em curso, talvez como “direito achado na rua”.
As ruas, porém, em nosso sistema constitucional, elegem seus representantes para o poder legislativo e executivo. A classe política, ampla e heterogênea, está mais próxima do clamor das ruas e do sentir comum do povo do que a classe dos juízes. Os juízes não detêm legitimidade para governar. Daí a gravidade da incursão do Poder Judiciário na esfera de atuação discricionária dos demais poderes e da supressão sumária de direitos inalienáveis dos cidadãos.
Todos os cidadãos têm o inafastável direito de militar em prol de uma causa ou preferência ideológica, mas se os juízes das mais altas Cortes, servindo-se do poder de que estão investidos para proteger os direitos a todos assegurados, pendem abertamente a balança para os cidadãos com cuja ideologia coincidem, temos a crônica da morte anunciada do Estado democrático de Direito.
Lord Acton advertiu há séculos que o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Nos livros de Direito Constitucional que temos à disposição para compreender nosso sistema jurídico encontramos invariavelmente a enfática defesa do Estado democrático de Direito. É preciso que todos nós cidadãos, e especialmente os advogados, nos unamos para exigir que o Poder Judiciário respeite sempre e devidamente os limites constitucionais a que está adstrito, a fim de que juntos, dissipemos os 90% restantes do iceberg que hoje dificulta nossa navegação.
[1] Trad. de Denise Bottman, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 7 e ss),
[2] https://www.migalhas.com.br/quentes/308080/luis-roberto-barroso-sauda-sepulveda-pertence—um-homem-que-ensina-sendo Homenagem ao Ministro Sepúlveda Pertence, Migalhas 6.08.2019.
[3] Cfr. Jorge Octavio Lovocat Galvao. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. Saraiva, São Paulo, 2014.