30/7/22

A ponta do iceberg e a esperança em tempos sombrios

Política

De cada iceberg, apenas cerca de 10% da sua massa emerge à superfície. Os demais 90% permanecem submersos, o que representa enorme perigo para a navegação.

Navegar é preciso, mas as restrições à liberdade impostas nas últimas semanas pelas mais altas Cortes do nosso país aos cidadãos brasileiros são estarrecedoras.  Da censura prévia à invenção de condutas sancionáveis por analogia, os princípios mais elementares que fundamentam o Estado democrático de Direito foram sumariamente abolidos. Por enquanto, por prazo certo. Mas prenunciam tempos sombrios.

Como chegamos a esse estado de coisas?

“Tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente; nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas, explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações.” Assim escrevia Hannah Arendt em sua obra Homens em tempos sombrios.[1]

Há um arcabouço jurídico, político e filosófico, largamente sedimentado, que justifica as eleições periódicas, o voto universal, e o respeito à dignidade da pessoa humana, incluindo o de livremente expressar e comunicar seu pensamento.

Na esteira de Montesquieu, Locke e Rousseau, a democracia brasileira é constitucional, e reconhece ao povo a participação na organização e no exercício do poder político. O controle judicial, nos limites e na forma da Constituição, é essencial e necessário, mas não se confunde com o ativismo puro e simples que se vêm constatando em decisões recentes de nossas Cortes superiores, em meio às paixões eleitorais.

O Poder Judiciário detém a nobre missão de pacificação de conflitos e de interpretação e aplicação da ordem jurídica. Como bem registrou o ministro Roberto Barroso, “se a sociedade não compreender e não se identificar com o que fazem seus juízes e tribunais, haverá um problema. Tribunais não têm armas nem a chave do cofre. Sua autoridade decorre da credibilidade que desfrute junto à sociedade”.[2]

A credibilidade junto à sociedade decorre, em princípio, da fundamentação de suas decisões. Estas têm sido transmitidas ao vivo e repercutem nas redes sociais. Os cidadãos e a imprensa as acompanham. Em tal cenário, decisões que impõem censura prévia, silêncio e desmonetização de canais de informação e de comunicação, de forma seletiva e parcial, contra e acima da lei, não apenas minam a confiança no Poder Judiciário como prenunciam o fim do Estado de Direito.

Trata-se da ponta de um iceberg. Teorias sofisticadas, “pós-positivistas” ou “neo-constitucionalistas” coincidem em submeter o direito, em última instância, à vontade de alguns iluminados, capazes de desvendar o verdadeiro e oculto sentido das normas, inacessível ao povo que, por meio de seus representantes, as elaborou e as deve cumprir[3].

O direito deixa de ser previsível, e mais: o ativista judicial o interpreta de modo a acelerar as transformações sociais que supõe estarem em curso, talvez como “direito achado na rua”.

As ruas, porém, em nosso sistema constitucional, elegem seus representantes para o poder legislativo e executivo. A classe política, ampla e heterogênea, está mais próxima do clamor das ruas e do sentir comum do povo do que a classe dos juízes. Os juízes não detêm legitimidade para governar. Daí a gravidade da incursão do Poder Judiciário na esfera de atuação discricionária dos demais poderes e da supressão sumária de direitos inalienáveis dos cidadãos.

Todos os cidadãos têm o inafastável direito de militar em prol de uma causa ou preferência ideológica, mas se os juízes das mais altas Cortes, servindo-se do poder de que estão investidos para proteger os direitos a todos assegurados, pendem abertamente a balança para os cidadãos com cuja ideologia coincidem, temos a crônica da morte anunciada do Estado democrático de Direito.

Lord Acton advertiu há séculos que o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Nos livros de Direito Constitucional que temos à disposição para compreender nosso sistema jurídico encontramos invariavelmente a enfática defesa do Estado democrático de Direito. É preciso que todos nós cidadãos, e especialmente os advogados, nos unamos para exigir que o Poder Judiciário respeite sempre e devidamente os limites constitucionais a que está adstrito,  a fim de que juntos, dissipemos os 90% restantes do iceberg que hoje dificulta nossa navegação.

[1] Trad. de Denise Bottman, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 7 e ss),

[2] https://www.migalhas.com.br/quentes/308080/luis-roberto-barroso-sauda-sepulveda-pertence—um-homem-que-ensina-sendo Homenagem ao Ministro Sepúlveda Pertence, Migalhas 6.08.2019.

[3] Cfr. Jorge Octavio Lovocat Galvao. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. Saraiva, São Paulo, 2014.

Compartilhe:

What’s a Rich Text element?

The rich text element allows you to create and format headings, paragraphs, blockquotes, images, and video all in one place instead of having to add and format them individually. Just double-click and easily create content.

Static and dynamic content editing

heading

heading

heading

How to customize formatting for each rich text

Headings, paragraphs, blockquotes, figures, images, and figure captions can all be styled after a class is added to the rich text element using the "When inside of" nested selector system.

Mais conteúdos:

9/7/2023
Filosofia

Ética apontamentos introdutórios

Ler mais
8/3/2024
Filosofia

O que é uma mulher?

Ler mais
10/7/2023
Filosofia

Beleza e ordem: que diferença faz em nossas vidas?

Ler mais