10/7/23

Beleza e ordem: que diferença faz em nossas vidas?

Filosofia

Beleza e ordem: que diferença faz em nossas vidas?

Maria Nazaré Lins Barbosa

1. O anseio pelo belo

A beleza tem muita importância na vida humana, e suscita admiração e desejo. Na verdade, a beleza é uma necessidade da nossa alma.

Em Platão (428-347 a.C.) o tema da beleza vincula-se ao tema do Eros e do amor, entendido como força mediadora entre o sensível e o suprassensível, força que dá asas e eleva, através dos vários graus da beleza, à Beleza existente em si. E como, para os gregos, o Belo coincide com o Bem, ou, de certa forma, representa um aspecto do Bem, o Eros é uma força que eleva ao Bem e a erótica se revela um caminho alógico que conduz ao Absoluto.

2. Aspectos objetivos da beleza

A beleza tem uma vertente objetiva e uma vertente subjetiva. Por um lado, a beleza corresponde a uma qualidade do real; não se reduz a uma impressão subjetiva. Nessa linha, Tomás de Aquino (1223-1274) descreveu três notas, rasgos ou características que se percebem objetivamente em tudo o que causa agrado estético: a harmonia, a integridade e o esplendor.

A harmonia refere-se à proporção do objeto em relação à sua própria natureza. Há milênios os artistas observaram na natureza a chamada “proporção áurea” e as reproduziram em suas obras de arquitetura, pintura, escultura. A razão “áurea” está presente em realidades tão variadas quanto a estrela do mar, o corpo humano, as pirâmides do Egito, a Vênus de Milo, o símbolo da Apple, e o tipo de retângulo utilizado em quase todos os documentos de identidade, sempre causando conforto estético.

Porém, um objeto proporcionado, mas defeituoso ou mutilado, não causa agrado estético. Assim, a segunda nota característica do que é belo é a integridade, o “acabamento”, que implica também aquele “toque final”, que distingue as realizações mais belas.

Finalmente, a luminosidade, claridade ou esplendor é a terceira nota distintiva daquilo que é belo. Aqui se alude ao poder de o que é belo evocar algo além de si mesmo, tanto no âmbito da matéria como do espírito. Para o entendimento, claridade quer dizer inteligibilidade, verdade, ser. Para a vista, nitidez, limpeza. Para o ouvido, aquela disposição de sons que torna agradável a audição.

3. Aspectos subjetivos da beleza

Embora a beleza possa entender-se objetivamente, também é algo relativo à percepção de cada sujeito, e, portanto, subjetivo.

Os pensadores ingleses do século XVIII polarizaram a reflexão sobre a beleza em torno ao seu caráter subjetivo, destacando seu valor emocional ou sentimental, e afirmando que tal sentimento não pode se relacionar com nenhuma propriedade do objeto. Nas palavras de David Hume (1711-1766): “Um milhar de sentimentos diferentes, motivados pelo mesmo objeto, serão todos eles corretos, porque nenhum deles representa o que realmente há no objeto”.

O erro desta colocação é considerar os critérios de gosto ou agrado alheios a qualquer critério de verdade. Este caminho acaba por confundir o gosto com a moda, que é a forma vigente sob o ponto de vista social em um momento dado, com caráter em grande parte arbitrário. Kant (1724 -1804) irá formular uma teoria sobre o juízo estético coerente com o seu sistema filosófico. Para ele, o juízo de gosto da beleza é universal, isto é, exige a adesão dos demais; mas a universalidade não se funda no consenso fático (como pensavam os filósofos ingleses), nem na objetividade do ser (como nos clássicos), e sim em um princípio “a priori”.

O idealismo de Kant se torna patente ao pretender que os conceitos e ideias existam “a priori” no intelecto como formas que modelam os objetos (esquece que o ser tem prioridade sobre o pensar). No entanto, a reflexão kantiana sobre a beleza, nascida como consequência de sua preocupação metódica, é de uma grande riqueza. Em relação ao tema que nos ocupa, o problema crítico colocado por Kant é o modo segundo o qual a beleza se relaciona com o limite do conhecimento objetivo. Pela primeira vez na história do pensamento filosófico afirma-se – como consequência da ênfase colocada no limite do conhecimento – que a beleza não pode ser captada pelos conceitos do entendimento. Significa dizer que a beleza tem a ver com o que se percebe no limite, estando mais além dele. Kant cindiu as propriedades que o pensamento clássico atribuía à beleza ao distinguir o belo (o que agrada) do sublime (o que produz um entusiasmo reverencial). Ao invés de entender o incomensurável ou sublime como o perfeito (tradição platônica) entende o incomensurável ou sublime como o desmedido ou informe, o irracional ou caótico. Abre caminho não só para a estética romântica como também para Nietzche (1844-1900), que identifica o belo com a multiplicidade e o “perspectivismo”.

4. A ordem nas ideias, na conduta e nos sentimentos.

Olhando a realidade que nos cerca, descobrimos diferentes níveis de beleza. Há uma beleza sensível, captada pelos sentidos, e há uma beleza inteligível, própria do universo espiritual. A beleza inteligível vincula-se com a verdade e com a bondade moral. Assim a feiúra (privação de beleza) é própria do erro, da ignorância e dos vícios, que podem se aninhar na nossa alma. Platão distinguiu três partes na alma: a razão, o apetite dos desejos, e o apetite dos impulsos e da ira. A razão deverá governar com sabedoria os desejos e os impulsos, mediante as virtudes da temperança e da fortaleza, para que se alcance uma vida justa e feliz. Em Platão, “a virtude será uma espécie de saúde, beleza e bem estar da alma” (A Republica, IV 444 a-e). Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C), discípulo de Platão, vê no homem um “animal racional”, no qual se integram as dimensões física, intelectual e afetiva, mediante escolhas morais, que têm em vista um fim, um “telos”, captado como um bem, capaz de dar sentido e felicidade à existência. Podemos ver essas dimensões na nossa vida:

a) na dimensão física situamos nosso instinto de sobrevivência. É necessário cuidar do físico – sono, saúde, alimentação - e adquirir os meios financeiros para a própria

sobrevivência.

b) na dimensão intelectual, situamos nosso desejo e necessidade de aprender. Por isso investir na nossa mente é uma tarefa gratificante.

c) na dimensão afetiva, consideramos nossa necessidade de afeto e de pertencimento. A qualidade dos relacionamentos enriquece a nossa existência; queremos amar, ser amados. Aristóteles chega a exclamar: “sem amigos, de que valeria a vida, por mais preenchida que estivesse de todos os outros bens”.

Todavia, embora possamos projetar a nossa existência, sabemos o quão efêmeras são as conquistas e as realizações humanas, seja no âmbito físico, mental ou afetivo, dado que a doença ou a incapacidade podem nos surpreender a qualquer momento, e a morte, inexoravelmente, nos aguarda. Além disso, constatamos rotineiramente à nossa volta a injustiça, o triunfo da violência, e isso tem um grande poder perturbador. Como não ceder ao desânimo, ao desencorajamento, e conformar a própria existência a horizontes mais estreitos? Será impossível ordenar a própria vida e encontrar beleza à nossa volta?

A dimensão espiritual confere sentido e unidade a nosso projeto existencial. Somos contingentes, mas ao mesmo tempo necessários, únicos, de tal modo que há uma contribuição ao mundo que somente cada um de nós pode oferecer. Para identificar a nossa missão, podemos fazer um exercício de “planejamento estratégico pessoal”, no qual alinhemos nossa visão, valores, objetivos e metas. Onde estou, onde quero chegar, no curto, médio e longo prazo? Que valores prezo? Qual a minha missão, a contribuição que me compete dar ao mundo? A resposta a esse conjunto de indagações pode fazer a conexão entre os grandes ideais e as escolhas, corriqueiras e cotidianas, que dia a dia espelham o curso que queremos e podemos dar à nossa existência.

5. Viver segundo a beleza

Voltamos nesse passo ao início, aos nossos desejos mais íntimos e ao mesmo tempo mais elevados. A beleza que vemos em toda a parte, e também em nossa alma, não é apenas necessária, ela é também acessível. O anseio pelo belo convoca, integra e mobiliza todas as nossas energias, todas as nossas aspirações, em um ímpeto ascensional. Mas para iniciar o percurso é necessário reconhecer a possibilidade de chegar a um bom termo. Cientes de que a ordem precede a beleza, podemos começar por ordenar o nosso eu.

Percebemos que somos, em grande parte, desde a nossa juventude, aquilo que queremos ser. E queremos realizarmo-nos, tornarmo-nos reais, em um sentido muito preciso: descobrir, aceitar e expressar com a máxima harmonia o próprio eu. Podemos iniciar o percurso ordenando o próprio físico, naquilo que está sob nosso domínio mais direto. Prossigamos ordenando nossas próprias ideias; e se necessário reconciliemo - nos com a nossa própria história. Estamos na trilha do sadio amor próprio, que facilitará a ordem nos afetos e nos relacionamentos. E finalmente será possível dar um sentido, uma orientação transcendente à própria vida, sem deixar de reconhecer o limite que a realidade nos impõe. “Quem mói no asp'ro não fantasêia”, escreveu Guimaraes Rosa. Mas, como escreveu Platão, somente a Ideia do Belo, entre todas as Ideias, recebeu o privilégio de ser “extraordinariamente evidente e amável”. Assim, basta haver contemplado um vestígio da sua presença, para que a nossa alma se inflame, tomada pelo desejo de alçar voo, em direção ao amor que nos transcende e nos constrange.

REFERÊNCIAS:

COVEY, Stephen R. Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes: lições poderosas para a transformação pessoal, Editora: BestSeller, 60a ed. 2017 (Título original: The 7 Habits of Highly Effective People, 1989).

LABRADA, Maria Antonia. Belleza y racionalidad: Kant y Hegel, Eunsa, Pamplona 1991

PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3a ed. Belém. EDUPA,2000

REALE.G., ANTISERI.D. História da Filosofia. v. 1. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo, Paulus, 2003.

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